...e ele ainda usava o mesmo chapéu. provável que fosse outro, mais novo, está mais limpo, mas igual, como as roupas da Turma da Mônica. foram anos, isso não é um exagero. pelo menos dez. menos de quinze com certeza... calculando certinho, eram quase treze anos. a uva-passa a seu lado variava em cores e parecia levemente mais enrugada, apesar de ainda parecer doce nas fotos tanto quanto sempre pareceu e nunca foi.
a questão do abandono foi algo que ela sempre tratou com certo carinho. parecia-lhe o melhor abandonar, como sal grosso para lavar a alma, ou um mergulho no mar (água com sal) para tirar as energias ruins, como sua mãe dizia. o abandono ela sempre tratou como se fosse o despir-se antes de ir para o conforto do leito. se não foi sempre, sentia que sim, sempre, mas há possibilidade de ter abandonado qualquer outra forma de lidar com isso há tanto tempo que já não soubesse mais da experiência de outra sensação.
a questão do abandono não era como esquecer o próprio passado, como aquele jornalista disse uma vez do brasileiro - sobre esquecermos a cada vinte anos os últimos vinte - mesmo brasileiro sendo, ainda que com um cri cri de historiador. e também não era como abandonar animais, de forma alguma, jamais pregaria algo assim, jamais reagiria a isso como algo normal e saudável, nem ao abandono de crianças, nem de materiais recicláveis no lixo (talvez ela fosse meio verde, apesar de considerar-se mais arco-íris, ou talvez verde água).
a questão do abandono, quem sabe, era-lhe exatamente essa: não era o adulto abandonando a criança, mas o contrário. o adulto, o brinquedo, os conhecidos e todo o resto. a família, lembranças selecionadas, presentes selecionados - tudo que não fazia bem. abandonando a si mesma... ou o pior de si... ou aquela si de que não precisa.
se a questão do abandono fosse cíclica, então voltaria para dó.