25 de julho de 2012

a questão do abandono

...e ele ainda usava o mesmo chapéu. provável que fosse outro, mais novo, está mais limpo, mas igual, como as roupas da Turma da Mônicaforam anos, isso não é um exagero. pelo menos dez. menos de quinze com certeza... calculando certinho, eram quase treze anos. a uva-passa a seu lado variava em cores e parecia levemente mais enrugada, apesar de ainda parecer doce nas fotos tanto quanto sempre pareceu e nunca foi.

a questão do abandono foi algo que ela sempre tratou com certo carinho. parecia-lhe o melhor abandonar, como sal grosso para lavar a alma, ou um mergulho no mar (água com sal) para tirar as energias ruins, como sua mãe dizia. o abandono ela sempre tratou como se fosse o despir-se antes de ir para o conforto do leito. se não foi sempre, sentia que sim, sempre, mas há possibilidade de ter abandonado qualquer outra forma de lidar com isso há tanto tempo que já não soubesse mais da experiência de outra sensação.

a questão do abandono não era como esquecer o próprio passado, como aquele jornalista disse uma vez do brasileiro - sobre esquecermos a cada vinte anos os últimos vinte - mesmo brasileiro sendo, ainda que com um cri cri de historiador. e também não era como abandonar animais, de forma alguma, jamais pregaria algo assim, jamais reagiria a isso como algo normal e saudável, nem ao abandono de crianças, nem de materiais recicláveis no lixo (talvez ela fosse meio verde, apesar de considerar-se mais arco-íris, ou talvez verde água).

a questão do abandono, quem sabe, era-lhe exatamente essa: não era o adulto abandonando a criança, mas o contrário. o adulto, o brinquedo, os conhecidos e todo o resto. a família, lembranças selecionadas, presentes selecionados - tudo que não fazia bem. abandonando a si mesma... ou o pior de si... ou aquela si de que não precisa.

se a questão do abandono fosse cíclica, então voltaria para dó.

23 de julho de 2012

voz visual, voz táctil

depois que comecei a lavar eu mesma minhas meias, nunca mais perdi um par.

este mês, faz dez anos que pela primeira vez rasguei o verbo - não como no ditado popular. rasguei o verbo por ter criado a primeira barreira àquilo que me era imposto: peguei o verbo do outro, rasguei e fiz um pequeno muro com um meu verbo. demorou um pouco para que o próximo viesse, mas depois de um tempo foi um verbo atrás do outro, unidos pela massa de algo que faz das pessoas capazes de decidir, e comecei a edificar-me.

precisava de atenção. mais do que aquela que recebia e, visto de hoje, era obrigada a ter. atenção genuína, interesse real, saber que o que dizia não era ridículo, ou mesmo não dizer nada e ainda sim ser uma criança que recebesse o carinho necessário ao berço. visto de hoje, o cercadinho fez perfeitamente sua função e barrou demais, em ambas as direções talvez. com o início da adolescência, não havia uma necessidade de gritar e me rebelar. isso pressupunha que eu me voltasse inclusive contra o meu próprio discurso anterior, e... que discurso?

durante o fim da adolescência, o cabelo foi voz, entre outras coisas. já tinha em mim uma bruta, sólida arquitetura, à qual faltava acabamento, uma fachada simpática, então testei as cores para as paredes de cada cômodo, e isso ficou claro ao mundo. eu berrava, e o verbo, em tudo em que punha mão, ficava imagem.

nunca mais perdi um par de meia depois que comecei a lavá-las eu mesma.

depois de tantas experiências, projetos - principalmente fracassados, tentativas, provações, temperos, cores, palpites, é muito bom ter consciência da própria voz, e ver isso tomar forma ao seu redor. é quase gratificante ver algo tão forte construído sem ter ajuda alguma nas fundações.
considero que, de fato, nasci há dez anos. e se no princípio era o verbo, nada mais justo. só que o que realmente é importante nisso é o nascimento de uma voz e sua manifestação das mais inusitadas maneiras, e com isso o nascimento do ser naquilo que era só organismo. é tomar as rédeas de si, mesmo que sem segurança a princípio, e então atirar bem longe o que parecia ser asfalto para que enfim nasça o que deve brotar deste solo. 

19 de julho de 2012

o paulistano no bufê de sorvetes

era uma sexta-feira bonita, que começava querer chover e não conseguia, quando conversei sobre isso com ela, isso que eu sentia que era a diferença mais sintomática e mais incomodante entre mim e meu povo. falar assim é meio pocahontas feelings, e sei que eu não seria a única por conhecer mais uns dois, talvez três sobrenomes que também sofram essa variação, mas se fosse possível generalizar, seria assim:

o paulistano, no bufê de sorvetes, serve-se apenas uma vez de cada sabor e com uma colherinha de café e só. isso parece ser suficiente.
eu me sinto contramão em relação aos conterrâneos - como já disse, não todos - porque, num bufê de sorvetes, o mais provável é que eu quisesse me servir com aquela colher de pegar arroz, quando não uma pá a depender do sabor.

tenho uma gula de mundo da qual me orgulho, só que aos olhos dos outros parece ser algo ruim. com o fim do ensino colegial e do apostilamento, um apetite pouco discreto, mas discreto, que eu tinha pareceu se converter numa fome mitológica. eu quero o mundo. eu quero um meu mundo. foi quase como se estivesse num quarto, com duas ou três janelas, e no segundo seguinte num espaço só janelas e todas para lugares diferentes e lindos e com experiências magníficas, todos desejáveis, todos desejosos. queria voltar pro piano, conhecer um bom punhado que já então criava raízes em minha lista de vontades dos pés e dos olhos, aprender mais cinco idiomas, subir a palcos, descer à masmorras, andar de bicicleta, voltar pra são paulo, voltar pro sul. ir para o norte - quase tudo. isso talvez se explique por um tardio ingresso ao faz de conta, visto que de todas as babás que mamãe nos contratou a melhor foi a tela da televisão. só descobri o prazer da leitura e de tantas outras coisas aos dezesseis, e me apeno por isso. mas, é claro, talvez...

como dizíamos eu e mais algumas pessoas ao redor que tinham o mesmo acúmulo de vontades, abraçar um mundo grande demais para os braços.

o paulistano, por outro lado, me lembra a madame que foi ao bufê de sorvetes com aquela colherinha de prata ridícula, provou de todos e se satisfez. tirando os pouquíssimos nomes que comentei, não me lembro de conhecer nenhum outro paulistano que tivesse viajado para mais de 150km do limite da metrópole - ou desce pra praia, ou sobe pra serra. há quem, eventualmente, tenha pego mais umas petiscadinhas de um determinado sabor porque gostou, daí veio a satisfação e fim. há também o paulistano que pegou uma colher de chá de um sorvete para que tirasse o sabor, que achou desagradável, de um sabor anteriormente provado (mas não necessariamente porque gostou do sabor seguinte, era só um escape). o paulistano me passa a seguinte impressão: como vive numa capital na qual marcam presença tantas culturas, não precisa visitar as raízes dessas belezas porque se satisfez com o que veio de barco. como já é capital e na capital tudo tem, não precisa visitar o interior por serem menos, nem outras capitais, por serem iguais.

é desgostoso demais pensar isso da minha própria gente...

16 de julho de 2012

não se pode fugir de si

estes olhos pousaram vezes o suficiente ao seu redor para que pudesse ser feita uma análise razoável. não... sobrevoaram, pois não havia onde pousar.

ela era uma confusão materializada, tão palpável que mal percebia que tinha se imposto. não foi apenas ali. em todos os seus ninhos que meus olhos tiveram a oportunidade de sobrevoar, ela estava lá, saía e estava ainda lá. o amontoado de emoções com as quais ela não sabia lidar a seguia de todas as formas, prejudicava-a e ela não via, prejudicava ao próximo e ela não via. como se não estivessem ali nenhuma de suas tempestuosas projeções.
um casinha pequena alugada, uma edícula, uma casa bem grande, um apartamentozinho num refúgio em outro estado, uma outra casa - dupla - bem grande, uma outra dupla casa bem grande, um apartamento mais duas casas duplas bem grandes... tudo cheio dela. imóveis repletos, impregnados, abarrotados por tudo aquilo que ela tinha dentro de si. ela não sabia lidar com isso. continua sem saber lidar com isso.

eu vejo.

só que ela não, nem via sua trincheira, nem a altura destes muros, nem as pessoas do outro lado. não vê como estas cortam as mãos e os pés e a mente e o coração tentando tocá-la. não vê que está isolada ao rodear-se de tanto de si. ela transborda incessantemente aonde quer que vá e não vê a enxurrada, este maremoto, carregar as pessoas pra longe de si, com os movimentos de seu eu-bermudas, contaminadas por uma falta de vontade de viver, de... 
ela bem que tentava, mas não conseguia perceber que ao redor de si mesma ela tinha materializado todo seu dentro. atribui, assim, a culpa ao mundo de sentir-se sozinha, um cão que não percebe que o rabo atrás do qual tanto corre é seu.

9 de julho de 2012

por que parei de escrever

Começo assumindo desde já que o motivo do meu hiato verbal escrito foi ridículo. A desculpa não é, de forma alguma, aceitável como algo que impedisse qualquer pessoa de escrever, de se expressar e, acima de tudo, de tentar fazer o que é bom para si.

Era uma situação de auditório na qual eu não estava sob os olhares, mas em meio a eles. Não estava perdida porque, àquela altura, eu achava ter me encontrado mais que nunca. Não lembro exatamente sobre o que era a conferência nem quem a proferia, mas o homem - lembro que isso era - perguntou algo sobre blogs e se alguém no recinto tinha um. Junto com mais gatos pingados, ergui o braço, quase orgulhosa por fazer parte de um seleto grupo que fazia uso dessa... coisa. Daí veio a pergunta seguinte:

- E o blog de vocês é sobre o quê?

Em mim, foi como se o teto tivesse caído. Como assim, sobre o que é meu blog? O blog é meu, isso é muito claro. Não é pergunta que se faça, o senhor está ultrapassando as barreiras socialmente aceitáveis de conhecimento do... Quê?
A percepção de que eu não sabia responder do que meu blog se tratava me levou à conclusão de que, se ele era sobre mim como a posse me pressupunha, então não era um blog interessante, e isso tinha consequências. Isso justificava muita coisa. E daí começou a maior crise de mim, a que foi mais forte justamente porque eu acreditava estar segura de quem eu era, e uma perguntinha besta me ruiu.

À época, paralelamente ao blog, mantinha escondidos poemas. Poemas de poemas mesmo,  aquele tipo de coisa que você acha que nunca vai fazer como Bilac manda, e não fiz, pois os meus eram arrancados do sentir e não do trabalhar: todos sobre amor ou algum desejo, ou expunham algum aspecto que eu acha no mundo que se refletia no espelho, ou ao contrário. O meu último poema foi o mais ousado e o que mantive mais escondido - ele citava um nome. Se não me engano, só duas pessoas pousaram os olhos nesse reciclado perdido no meio da minha agenda. 
À época, esse poema representada o pico. O epicentro de algo grandioso e turbulento e interno.

Daí nesse misto abismo, parei de escrever.

3 de julho de 2012

por que voltei a escrever

percebi com a abertura deste espaço que meu silêncio perdurou quatro anos.

tinha como desculpa para não me pôr em palavras a) que não adiantava escrever sem ter para quem; b) que só podia escrever diante do teclado, porque pena evoluída não guardaria tão bem no meu e-mail aquilo que eu perco com facilidade, c) que não poderia fazê-lo à mão porque ela demora demais, me obriga parar, me diminui o ritmo de pensamento. o ridículo foi tanto, e a vergonha, quando a última desculpa para não se desenvolveu tanto em ótimo motivo como em solução.

eu sentia vontade ou necessidade ou impulso por voltar a escrever, e matutar por tanto o meio ao invés da mensagem levaria à falência de um eu-verbalizador, não fosse o estímulo, o apoio. eu precisava de alguém. eu queria que alguém lesse, ao mesmo tempo que não. e, independente disso, estava presente em minha vida algo maravilhoso, uma pessoa que dizia "escreva", e não "escreva pra mim", ou "escreva pra ele(a)(s)", ou "escreva por isso".

porque sim não é resposta?

eu precisava externar muito e a rede, social ou não, sugava a voz, me levava o discurso, tapava a garganta, distrações em toda tentativa. como um filho, não conseguia batizar o espaço que seria meu santo solo, meu altar de mim. é natural que este altar seja composto de tantos eus, tanto de mim, pois escrevo muito mais pra mim, hoje. é uma delícia ter você comigo, mas eu preciso demais de mim para que você seja minha prioridade, e - por isso sinto que meu altar de mim é importante - eu só me dou carinho aqui. 

nenhuma vida é mar de rosas, e a minha talvez tenha sido bem caderninho de colorir, todo branco com figuras delimitadas até que um dia descobri o arco-íris. reinaram sobre mim maus exemplos. os arquétipos que me foram mais presentes durante o processo de formação foram aqueles do que não devo seguir, que conscientemente sabia "isso é o que não devo fazer quando na mesma situação" e não os que "queria ser quando crescer". tenho plena certeza de que isso foi a base de um repúdio por todas as palavras com prefixo ego, uma eterna luta para não ser ou me sentir egocêntrica ou egoísta, principalmente. não materialista. não fútil. não consumista. não.
querendo não tão conscientemente assim ser uma pessoa extremamente boa, eu me esqueci. deixei de me preocupar comigo, de ter medo por mim, de me prezar. tudo aquilo em mim que eu fiz questão de manter por anos, e do qual sinto saudades, era o que me ligava às pessoas que amava ou amo. percebi, nesses quatro anos, ter sido os outros mais que eu. eu me quero de volta. não é uma questão de saber quem eu sou, é o satisfazer-se consigo e se considerar boa companhia para si.

não quero me cobrar a consciência plena de mim, mas eu me perdi e isso é um fato. também pudera, com tanta bala perdida por aí, por que logo eu teria que me achar amanhã?


não quero um blog literário, ou geek, ou crítico social, ou jornalístico, ou modista, ou gastronômico, ou qualquer temático. mudo muito para isso. estações do ano talvez sejam um paradigma - e eu tô falando das quatro, não das que São José do Rio Preto manifesta. não quero me delimitar no texto, nem em mim. mesmo que o único assunto deste lugar fosse ser eu mesma, isso não significa que não caiba um mundo nestes braços, significa?

2 de julho de 2012

outra pedra

não digo que foi a pior coisa que já me aconteceu ou a pior coisa que poderia ter acontecido, mas doeu. a princípio, não quis crer. mesmo agora, consciente, o aperto entre pulmões é consequência da vontade agonizante do passo à frente com que te abandono, abandono toda sua imagem construída em mim, abandono anos, sorrisos, conselhos, birras, e band-aids.

preciso fazer questão de abandonar o que já me fez tão bem e se mostra hoje veneno. é uma questão de amor, sim: amar a mim.

como você...? por que você...? de tantos... 

você.