Fui uma criança cujo contato maior sempre foi com parentes que com amigos da escola até os dez anos, e a maioria deles eram meninos. Ocasionalmente vinha uma prima de uma cidadezinha pequena “próxima” pra brincar comigo, mas com ela vinham também mais dois primos homens. Então, em suma, éramos eu crescendo com um irmão mais velho e um mais novo, ela com dois mais velhos, e mais três primos de uma outra cidadezinha pequena – essa, próxima mesmo – sempre fazendo brincadeiras que socialmente são designadas a meninos.
Talvez por esse motivo minha mãe tenha tido a brilhante ideia de que, se eu era arisca como um guri, não haveria problema de cortar meu cabelo Joãozinho (mas hoje se diz “pixie”, provavelmente pra desvincular o caráter pejorativo de “Joãozinho” a uma coisa que, no fundo, é o mesmo corte).
Até os quase dez anos, então, pouca coisa me fazia “menina” aos olhos da sociedade. Isso me foi lembrado, de verdade verdade mesmo, pela Natureza. E daí pra frente precocemente ocorreu a fase riot, iniciando-se muito cedo, e uma das minhas maiores rebeldias foi, olha só, brigar com minha mãe pra que deixássemos meu cabelo crescer. Foi um enfrentamento que, à época, pra alguém de dez anos apenas, foi do tamanho do mundo – até porque meu mundo não era tão grande assim: ia de Santos até a casa da minha avó, no interior do MT, e tinha a “terra de ninguém” um pouco depois, pois minha mãe havia trabalhado por uns meses em Rondônia durante o ano em que juntei sete primaveras. Acho importante mencionar que uso “primaveras” porque nasci na primavera do hemisfério sul, não por modismo ou lirismo, mesmo porque sempre gostei mais do Outono. Depois dos vinte que passei a apreciar devidamente as flores que dão na Primavera, mas os ipês são meus favoritos e esses são mais rebeldes. Talvez sejam meus favoritos por rolar uma identificação pela rebeldia de fazerem as coisas em tempos em que não se espera aquilo deles, ou porque florescem quando não deveriam. E cada cor a seu tempo.
Só que, como eu era arisca como um guri, a solução encontrada por mamãe (que não era a Natureza) para apoiar o fato de meus cabelos crescerem (que é algo natural) foi antinatural: alisá-los.
Gurias ariscas como guris não deixam que penteiem seus cabelos, então cabelo liso seria “mais fácil de cuidar”. Somei, então, coisa de quatorze anos ininterruptos com ALGUMA química antinatural na cabeça: alisamentos, relaxamentos, muito em breve tonalizantes, que logo se converteram em tinturas, castanho claro, castanho escuro, castanho médio, loiro escuro PÚRPURA na sétima série (assistia muito anime), mais castanhos, preto, preto, preto, preto azulado, uns quinze tons de ruivos, incluindo laranjão, até a primeira descoloração total aos dezoito, sem contar aí no meio a revolta popular contra a amônia e a historiografia das escovas de mil etnias e nacionalidades que surgiram depois já que só japonesa e marroquina não bastavam, e quando estas acabaram houve escovas com sabores (por exemplo, a de chocolate. Estamos no aguardo, escovas orgânicas sem agrotóxicos), e do loiro platinado pro rosa, pro roxo, pro lilás, pro azul e – antes de chegar no verde, infelizmente, foi a vez de mamãe se revoltar e parar de falar comigo porque a coisa estava “fora de controle”. De volta ao mundo das cores-farmácia - e, olha só, ao Joãozinho -, houve ainda alguns alisamentos e até uma traição cabeleireirística em 2011.
Aos 25, então, a diminuição de um metro de cabelo pra uns coincidentemente 25cm finalmente me deu a certeza de que tudo que eu via em cima da cabeça ao olhar no espelho era, então, final e definitivamente, meu mesmo. Assim era meu cabelo. Finalmente, após tantos e tantos anos, nos reencontramos de novo.
Daí bateu certa “decepção”: vejo meu cabelo e ele não é Black Power como sempre fui levada a acreditar que era. “Cabelo rebelde”, “difícil de cuidar”, “cabelo ruim”, e todas as outras expressões contra as quais lutam as militantes dos cachos sequer poderiam ser aplicadas. Passei anos tentando mudar algo sem nunca ter conhecido como era realmente, e depois passei pela busca do achar-se a si mesmo sem nunca ter uma referência fluida, como algo que vem de dentro, para enfim encontrar algo novo que, se pensar bem, esteve sempre ali.