22 de julho de 2014

Capa dura e nanquim

De modo geral, é impossível dizermos que a infância foi feliz. Todas as provocações de todo ensino fundamental a revisitam ao menos semanalmente. Se comparadas às visitas dos amigos, aquelas são muito mais frequentes, porque infelizmente depois do ensino fundamental sobra muito pouco tempo pra aproveitarmos os que nos fazem bem, o tempo passa mais rápido e as obrigações de fazermos coisas nem tão boas assim nos consomem.

Pra se sentir menos sozinha, resolveu escrever.

"Que bobagem" pensa hoje, "o plano de saúde já cobre terapia com um profissional capacitado". Mas não muda o fato de que as coisas ruins ainda são mais frequentes à mente dela do que as visitas ao terapeuta, uma vez por semana. Os amigos, ultimamente, uma vez por mês ou nem isso. 

Com tanto passado assombrando e tanto futuro a ser planejado para que o depois seja melhor que o antes, o agora é um caso perdido. Talvez seja como andar de bicicleta - devemos aprender a aproveitar o agora quando ainda somos pequenos e depois, tarde demais. Desmesuradamente tarde, a melhor opção deve ser voltar páginas desta casca grossa e tentar reler aquelas nas quais a menina foi pintada aos passos primeiros.

É complicado rever essas páginas porque boa parte está manchado. É complicado quando cenas fortes, tão importantes, são feitas com um material tão delicado. O nanquim não é apropriado pra esse tipo de coisa e o homem das cavernas já sabia disso - os primeiros passos foram tão bem gravados que ainda os lemos em paredes. Um antigamente tão definido e um ontem tão borrado...


20 de julho de 2014

delícias de inverno

Este não é um texto sobre o cardápio especial de estação. 

É sobre algo ainda mais gostoso; uma experiência tão surreal quanto banal, bem como a seleção de itens gastronômicos que por alguma razão devem ser servidos nesse clima. 

O sol de inverno estava um abraço. Eram 12h23 em São José do Rio Preto, noroeste do estado de São Paulo. E, se Minas é boca de sertão, essa parte do estado certamente é aquela pintinha perto da boca, que nem a da Marilyn Monroe.
Não sabia se ficava na delícia que era o abraço solar, recém-(re)descoberto, ou no frescor da sombra das árvores ao qual me apeguei muito durante o fim dos meus anos dez.
Era quase uma sensação de "chegou a sua vez" - talvez morangos sintam-se assim nessa época. Isso faz dois anos, mas sensação pra mim é tão clara como se a tivesse guardado na bolsa quando a senti naquela esquina, depois numa gaveta, e tirasse de lá de vez em quando pra dar uma olhada, como uma lembrança de infância.

19 de julho de 2014

Stuart Hall ao final

Fui uma criança cujo contato maior sempre foi com parentes que com amigos da escola até os dez anos, e a maioria deles eram meninos. Ocasionalmente vinha uma prima de uma cidadezinha pequena “próxima” pra brincar comigo, mas com ela vinham também mais dois primos homens. Então, em suma, éramos eu crescendo com um irmão mais velho e um mais novo, ela com dois mais velhos, e mais três primos de uma outra cidadezinha pequena – essa, próxima mesmo – sempre fazendo brincadeiras que socialmente são designadas a meninos.

Talvez por esse motivo minha mãe tenha tido a brilhante ideia de que, se eu era arisca como um guri, não haveria problema de cortar meu cabelo Joãozinho (mas hoje se diz “pixie”, provavelmente pra desvincular o caráter pejorativo de “Joãozinho” a uma coisa que, no fundo, é o mesmo corte).

Até os quase dez anos, então, pouca coisa me fazia “menina” aos olhos da sociedade. Isso me foi lembrado, de verdade verdade mesmo, pela Natureza. E daí pra frente precocemente ocorreu a fase riot, iniciando-se muito cedo, e uma das minhas maiores rebeldias foi, olha só, brigar com minha mãe pra que deixássemos meu cabelo crescer. Foi um enfrentamento que, à época, pra alguém de dez anos apenas, foi do tamanho do mundo – até porque meu mundo não era tão grande assim: ia de Santos até a casa da minha avó, no interior do MT, e tinha a “terra de ninguém” um pouco depois, pois minha mãe havia trabalhado por uns meses em Rondônia durante o ano em que juntei sete primaveras. Acho importante mencionar que uso “primaveras” porque nasci na primavera do hemisfério sul, não por modismo ou lirismo, mesmo porque sempre gostei mais do Outono. Depois dos vinte que passei a apreciar devidamente as flores que dão na Primavera, mas os ipês são meus favoritos e esses são mais rebeldes. Talvez sejam meus favoritos por rolar uma identificação pela rebeldia de fazerem as coisas em tempos em que não se espera aquilo deles, ou porque florescem quando não deveriam. E cada cor a seu tempo.

Só que, como eu era arisca como um guri, a solução encontrada por mamãe (que não era a Natureza) para apoiar o fato de meus cabelos crescerem (que é algo natural) foi antinatural: alisá-los.

Gurias ariscas como guris não deixam que penteiem seus cabelos, então cabelo liso seria “mais fácil de cuidar”. Somei, então, coisa de quatorze anos ininterruptos com ALGUMA química antinatural na cabeça: alisamentos, relaxamentos, muito em breve tonalizantes, que logo se converteram em tinturas, castanho claro, castanho escuro, castanho médio, loiro escuro PÚRPURA na sétima série (assistia muito anime), mais castanhos, preto, preto, preto, preto azulado, uns quinze tons de ruivos, incluindo laranjão, até a primeira descoloração total aos dezoito, sem contar aí no meio a revolta popular contra a amônia e a historiografia das escovas de mil etnias e nacionalidades que surgiram depois já que só japonesa e marroquina não bastavam, e quando estas acabaram houve escovas com sabores (por exemplo, a de chocolate. Estamos no aguardo, escovas orgânicas sem agrotóxicos), e do loiro platinado pro rosa, pro roxo, pro lilás, pro azul e – antes de chegar no verde, infelizmente, foi a vez de mamãe se revoltar e parar de falar comigo porque a coisa estava “fora de controle”. De volta ao mundo das cores-farmácia - e, olha só, ao Joãozinho -, houve ainda alguns alisamentos e até uma traição cabeleireirística em 2011.

Aos 25, então, a diminuição de um metro de cabelo pra uns coincidentemente 25cm finalmente me deu a certeza de que tudo que eu via em cima da cabeça ao olhar no espelho era, então, final e definitivamente, meu mesmo. Assim era meu cabelo. Finalmente, após tantos e tantos anos, nos reencontramos de novo.

Daí bateu certa “decepção”:  vejo meu cabelo e ele não é Black Power como sempre fui levada a acreditar que era. “Cabelo rebelde”, “difícil de cuidar”, “cabelo ruim”, e todas as outras expressões contra as quais lutam as militantes dos cachos sequer poderiam ser aplicadas. Passei anos tentando mudar algo sem nunca ter conhecido como era realmente, e depois passei pela busca do achar-se a si mesmo sem nunca ter uma referência fluida, como algo que vem de dentro, para enfim encontrar algo novo que, se pensar bem, esteve sempre ali. 

E pensar que tudo isso me veio à mente só por ter lido uma matéria sobre o sistema da PF recusar pessoas com cabelo afro... Mas deixo as discussões sobre identidade na pós-modernidade pro Hall e pros colegas acadêmicos.